domingo, 3 de abril de 2011

A Borboleta Preta


Hoje quero deixar pra vocês um texto fabuloso de autoria de um dos maiores escritores da Literatura de Língua Portuguesa, Machado de Assis.

A borboleta preta

"No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me
aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

-- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão, -- uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,-- me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: 'Este é provavelmente o inventor das borboletas'. A idéa subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu creador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dous palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última idéa restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à primeira idéa; creio que para ela era melhor ter nascido azul."


Este é um capítulo d o Livro "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Algo que eu acho incrível nesse texto é a capacidade de retirá-lo do contexto geral sem que a ideia principal contida nele se perca. Claro que lendo o capítulo solto não dá para saber a complexidade do romance. Mas continua sendo uma história perfeitamente plausível e toda a mensagem que o autor procurou passar está ali, intacta. Eu conheci esse texto, ainda no início da minha adolescência, em um livro de português. Depois de alguns anos, quando li o livro, reconheci de imediato o texto e foi aí então que comecei a perceber essa incrível possibilidade.

NOTA: amo Machado de Assis, beijos

Um comentário:

Ana disse...

Mas ele matou a borboleta só pq ela era preta???? rsrsrs
Solto assim, esse texto me parece meio louco Carol =)
Beijinhos.